(Foto de Bruna Fossile)
Mircea Eliade, em sua grande obra O Sagrado e o Profano, diz que o homem tradicional (chamado por ele no livro de homem religioso) usa o mito como forma de sacralizar todos os atos do seu dia a dia. Assim, tudo o que ele faz refere-se ao divino: toda a sua vida desenrola-se com o olhar nos céus.
Na obra, Eliade cita, por exemplo, as atividades agrícolas, os rituais de passagem, entre uma série de outros atos cotidianos. E a literatura antiga confirma isso: em O Trabalho e os Dias, de Hesíodo (datado da Grécia Antiga), o autor fala sobre a agricultura e sua relação com os deuses.
No cristianismo, essa relação continuou: os fiéis interpretaram as mudanças socioeconômicas à luz da fé cristã e buscaram sacralizar as relações econômicas e de trabalho. Os últimos escolásticos já teorizavam sobre a natureza do dinheiro e do valor, algo que viria a influenciar as discussões econômicas posteriores.
A partir do papa Leão XIII (século 19), essa preocupação tornou-se assunto abordado oficialmente pelo magistério da Igreja por meio da Doutrina Social da Igreja: agora, o papa e os bispos publicavam documentos com orientações a respeito das relações de trabalho, do papel do governo na sociedade e dos perigos das ideologias sociais.
Entretanto, num mundo cada vez mais secularizado, a dimensão espiritual do trabalho vai se perdendo e passamos a ver a vida cada vez mais como apenas uma sucessão de fatos desconexos e desligados de qualquer tipo de sacralidade.
A questão é que não existe vácuo no poder: se os atos religiosos e transcedentais perdem espaço, algo entra no lugar deles. Com a perda do transcendente, sobrou apenas o imanente, o material.
Por isso, na sociedade contemporânea, vemos certos rituais atrelados ao trabalho ganhando um status de transcendência: o primeiro emprego, a compra da casa própria, a aprovação em uma boa faculdade e outros tornam-se uma espécie de marco temporal, assim como nas sociedades antigas existiam os ritos de passagem, festas religiosas, etc.
Por conta justamente dessa secularização, passou-se a ver no mundo material um fim em si mesmo: ao invés de usar o dinheiro para o bem de sua família e comunidade, conquistar uma boa posição no trabalho e ter status social se tornou o objetivo final de muitas pessoas.
Contrabalanceando isso, no entanto, estamos vendo uma tendência de sacralização do trabalho vinda por meio de uma iniciativa católica que tem crescido cada vez mais nas últimas décadas: a Opus Dei.
A Opus Dei é uma organização católica que tem como fundador São Josemaria Escrivá. Essa organização prega a santificação por meio do trabalho e das pequenas tarefas do dia a dia. A ênfase do grupo não é nos grandes martírios ou práticas ascéticas, mas sim numa fé rotineira e consistente através de atos pequenos que, pouco a pouco, aproximam o fiel a Deus.
Me parece que o que possibilitou o desenvolvimento dessa espiritualidade do cotidiano, por assim dizer, foram dois desenvolvimentos na fé católica: Primeiro, a publicação de livros espirituais para leigos, como por exemplo a Filoteia, de S. Francisco de Salles. Em segundo lugar, a Pequena Via, de Santa Teresinha, que promove justamente um caminho pequeno e simples, de santificação das coisas simples.
É curioso ver a popularização de uma nova teologia em tempo real. Imagino que ela cresça cada vez mais e se torne a forma padrão de vivenciar o trabalho para o cristão. Vejamos como isso se desenrola.
Alguns marxistas podem alegar que tudo o que estou falando é apenas uma estratégia das grandes elites de manipular a sociedade através da religião, fazendo as pessoas se conformarem ao trabalho extenuante e serem oprimidas sem questionar.
Respondendo a isso, sugiro o documento In Plurimis, do papa Leão XIII, que mostra como o cristianismo sempre mudou para melhor a realidade ao seu redor – sem precisar fazer uso de revoluções para isso. Eventualmente farei um texto sobre esse assunto.
Livros recomendados:
O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade
Ferreiros e Alquimistas, Mircea Eliade
O Trabalho e os Dias, Hesíodo
Como a Igreja Católica Construiu a Civilização, Thomas Woods (Cap. 8)
Caminho, São Josemaria Escrivá
Falar com Deus, Francisco Fernández-Carvajal
Filoteia, São Francisco de Salles
História de uma Alma, Santa Teresinha
Rerum Novarum, Leão XIII
In Plurimis, Leão XIII