“Tradwives: donas de casa de direita conquistam seguidores” foi a notícia que eu vi num print do Twitter.
Na capa, vi a Natália Matias, a mãe que comemorava mesversário da filha chamada Maria com temas: Maria vai com as outras, Maria do bairro, etc.
Eu achei curioso, porque ela claramente não era de direita – ela até disse que não faria mesversário temático com a Maria, mãe de Jesus, porque não queria que as pessoas de outras religiões se sentissem mal. Quer coisa mais esquerda cosmopolita do que isso?
Também já tinha ouvido falar dela numa vez que falaram que ela copiava o cabelo de uma outra garota famosa (as pessoas na internet não têm mais o que fazer e viraram sommelier de penteado).
Mas o que mais me chamou a atenção foi o comentário em cima da notícia: segundo um usuário aleatório, aquela mulher na foto tinha um blog que foi compilado em um livro chamado “O Segundo Cu”. No Facebook, circularam alguns dos seus contos mais considerados mais bizarros.
Achei aquilo curioso, fiquei pesquisando daqui e dali e resolvi ler o bendito livro pra saber se era assim tão bizarro.
(E confesso que fiquei um pouco triste: seria uma baita jogada de marketing escrever “O Segundo C*” com asterisco, já que o símbolo realmente parece com um cu.)
Opinião geral
Vamos começar com os finalmentes: eu gostei. No geral, tive uma opinião positiva da obra como um todo. No aplicativo que usei pra ler, dei 3 de 5 estrelas.
É um livro curto, cheio de contos igualmente curtos, desses que você pode saborear um por um, refletindo sobre o que acabou de ler. Alguns contos são melhores do que os outros, é verdade, mas isso sempre acontece com coleções de contos.
A autora escreve bem e faz bom uso das palavras, segundo o que ela se propõe. Gosto da forma coloquial que ela escreve e os termos explícitos têm o seu charme, já que são pouco comuns nos livros.
E por ser uma escritora contemporânea, ela consegue atingir certos aspectos, certas dores que vivenciamos dia a dia, o que dá ainda mais relevância pra obra.
Falta de sutileza
Mas o livro não é perfeito: seu grande problema é, justamente, a falta de sutileza em alguns pontos. E eu não estou falando dos palavrões.
Sim, a Natália faz contos sobre todo tipo de fetiche que você pode imaginar, e escreve de maneira bem literal, algo que pode incomodar alguns.
Mas esse não é o problema do livro – afinal, a literatura sempre chocou, especialmente desde a invenção dos romances modernos. O ponto é que, com sua literalidade, ela acaba deixando pouco espaço pra profundidade nas analogias.
Por exemplo: logo em um dos primeiros contos, o “Jiboia Africana”, ela fala sobre violência contra a mulher. Se o conto tivesse acabado um pouco antes do final (mais precisamente, na parte que diz que “Henrique tinha matado Heloísa”, já teríamos entendido que sua mensagem.
Mas, depois da sua narrativa, ela finalizou com outros dois parágrafos explicando o que ela quis dizer. Isso é subestimar a inteligência da audiência, como se sem essa explicação, não fosse possível entender o que ela disse.
Muitos contos seriam bem melhores se ela acabasse o conto alguns parágrafos antes, sem nenhuma explicação final.
Outro exemplo é o conto “O irresistível Peixe-moça”, que poderia ter acabado sem o parágrafo final, deixando pro leitor completar as lacunas e chegar à conclusão do que ela queria dizer com o texto.
A analogia é como uma piada: quando você explica ela pro leitor, perde a graça.
Não me incomodei com os contos sobre fetiches bizarros, que permeiam a maioria do livro. Entendo o valor que o choque tem na literatura.
Mas acho que a Natália podia ter deixado as coisas escrachadas quando fala de sexo e nojeira, mas manter a sutileza quando quisesse trazer mensagens mais profundas.
“Bolo mofado” é um de seus contos mais famosos – talvez o mais famoso. Já vi diversas mulheres falando sobre o quanto se identificaram com a história.
Agora imagine se, no fim da história, ela escrevesse:
“Esse bolo mofado que recebemos é o afeto das pessoas que nos fazem mal. Comemos porque é a única coisa que nos oferecem e nos acostumamos a isso. Por causa disso, quando alguém que quer o nosso bem chega em nossa vida, acabamos não entendendo aquele tipo de afeto”.
O texto teria explicado o conto? Teria, mas também teria feito com que ele perdesse toda a graça, que é a de complementar o que está dito nas palavras.
Tocando a alma humana
Tem outro ponto que me incomodou – não porque foi ruim, mas porque me pareceu que podia ser em melhor.
Em alguns contos, realmente senti que a Natália conseguia tocar o mais fundo da alma humana, naqueles sentimentos escondem ou não sabem que sentem.
Por exemplo, no conto “Palhaços da Alegria”, consegui imaginar como uma pessoa podia usar do altruísmo como uma espécie de egoísmo, ajudando os outros só para se sentir superior e sinalizar virtudes para a sociedade.
Em “Vegetariano”, gostei da sutileza com que ela mostrou a hipocrisia do rico vegano que queria impor à sua empregada uma realidade claramente inacessível a ela (as frases feitas e o tom professoral tornaram a história ainda melhor).
Em “Galinhas de Estimação”, confesso que fiquei encantado pensando na capacidade de certas pessoas de ver o belo nas coisas simples, amando até mesmo aquilo que parece não merecer ser amado.
No entanto, em muitos dos contos, pude notar uma série de lugares-comuns da esquerda progressista.
Veja bem, o problema realmente não é ser de esquerda – afinal, a maioria da classe artística é de esquerda, e isso não os impediu de fazer obras excelentes. Só de cabeça, consigo pensar em Tolstói, Camus em Oscar Wilde.
Mas não pude deixar de ficar um pouco desapontado com isso: “ela tem capacidade de ir tão além das críticas mais básicas e penetrar na alma humana em certos contos, por que em outros ela fica perdendo tanto tempo com críticas que a gente lê todo dia no Twitter?”.
Eu entendo que a classe artística tem que pagar o seu pedágio pra ficar bem com a galera, mas acho que ela passou do ponto em alguns momentos.
Não acho que isso impeça a leitura do livro, até porque esta é a primeira obra da autora. Creio que ela pode lançar outras obras ainda melhores no futuro, caso não desista de escrever.
Reações ao livro
Uma das coisas que me surpreendeu a respeito das reações do livro foi a surpresa das pessoas. Eu já esperava reações desse tipo das pessoas mais conservadoras que passaram a segui-la por conta dos conteúdos que ela faz sobre maternidade. No entanto, a esquerda também pegou pesado nas críticas moralistas.
E sabe o curioso? Ela é claramente de esquerda. Não sei se ela se importa muito com política e nem se ela se considera de esquerda, mas ela claramente tem uma visão mais voltada à centro-esquerda (na falta de termo melhor).
Se ela se declarasse feminista ultrarradical, antifascista e todos esses termos que deixa essa turma satisfeita, certamente seus contos seriam defendidos como a mais pura e incorruptível obra de arte jamais feita.
No entanto, ela ousou ter uma família tradicional, parar de trabalhar fora de casa e, olhem só que heresia, fez promessa pra São João! Com isso, não dá pra esquerda defender, ainda mais com a acusação de que ela era tradwife.
A verdade é que a esquerda é muito mais moralista do que qualquer conservador tradicionalista dos dias de hoje. Eles querem que todos sigam a moral e bons costumes segundo sua própria agenda.
É como se, por ela ter ousado dar um passinho fora da bolha, ela tivesse se tornado inimiga.
Choque e juventude
A literatura sempre chocou. Desde o primeiro romance realista, “Madame Bovary”, que fez o autor ser julgado por ir contra a moral.
O mesmo pode ser dito de “O Retrato de Dorian Grey”, com suposta apologia ao homossexualismo. Ou “Laranja Mecânica”, com sua violência explícita.
E no Brasil, não podemos nos esquecer de Nelson Rodrigues, que já publicava contos cheios de putaria nos anos 60 – contos esses coletados no brilhante “A vida como ela é”.
Por isso, o que a Natália faz não é novo, é só o que a literatura sempre tem feito: entregar análises da alma humana sob o manto narrativo, cheio de elementos literários (como o choque) que prendem o leitor.
Claramente a Natália era uma jovem edgy quando escreveu esses contos. Ela nem usa o mesmo nome com o qual assinou o livro em suas redes sociais: de Natália Nodari, agora virou Natália Matias, por conta do sobrenome do esposo.
Pelo que dá pra ver por seu conteúdo atual no Instagram, ela já passou dessa fase e talvez nem queira mais se associar com esse livro.
É como se você tivesse chegado aos 30 e ainda tivesse todas aquelas fotos vergonhosas da época do Orkut e Facebook na internet, sem que você pudesse deletá-las.
Reação às críticas
Já que estamos falando da autora, vale a pena fazer mais um comentário: algo que me decepcionou em tudo isso foi a reação que ela teve às críticas.
Vi um vídeo no TikTok no qual ela se explicava, dizendo que ela sempre escreveu na perspectiva do vilão, e que usava esses contos pra lidar com traumas.
Não duvido do que ela tenha passado e sei que a escrita pode ser terapêutica de muitas maneiras. Também nunca passei pelo trauma que ela sofreu, então posso correr o risco de estar sendo um pouco injusto aqui…
Mas por que ela ficou toda preocupada com a reação das pessoas? Sinceramente, a explicação que ela deu no TikTok de escrever na perspectiva do vilão me pareceu fraca. Acho que ela podia ter reagido de maneira diferente ao invés de fazer voz fininha, biquinho e cara de choro
Era mais fácil explicar o que, muito provavelmente, é a verdade: foi uma fase anterior, na qual ela era uma adolescente querendo chocar, e aquilo não mais a representava.
Qual o problema em dizer que você era uma adolescente edgy e queria chocar o mundo com os seus contos? Que queria ser a nova Bukowski ou a nova Nelson Rodrigues.
O futuro de Natália Nodari
A Natália já foi redatora publicitária. Eu também. Por isso, sei que ela conhece técnicas de marketing.
Minha namorada disse que ela espalhou cartazes pela sua cidade convidando as pessoas a “lerem o seu segundo cu”. Ela escolheu um título chocante, criou uma base de seguidores nas redes sociais, tudo bem planejado, fez um lançamento inusitado, tudo muito bem planejado.
Também vejo o cuidado que ela tem com seu Instagram atual de maternidade. Vejo suas habilidades de edição, os roteiros dos vídeos e as ideias pra viralizar.
Por isso, sei que ela não é boba e que poderia ter usado essa situação pra desenvolver sua carreira de escritora. No entanto, esse parece não ter sido o caminho que ela escolheu.
Ela provavelmente está com uma vida bastante confortável com seu trabalho de influencer, a julgar pelos seus 500 mil seguidores. Por que, então, perder tempo escrevendo coisas polêmicas, quando isso pode prejudicar definitivamente o seu ganha-pão?
Ela parece ter escolhido o caminho com dinheiro e sem polêmicas, e ninguém pode julgá-la por isso – quantos de nós não teríamos feito o mesmo?
Mas um lado meu não pode deixar de ficar triste. Queria que ela tivesse coragem de defender o livro, apesar de todos os seus defeitos. Queria que ela anunciasse um terceiro, quarto e quinto cu ao longo dos anos.
Mas eu acho que isso não vai acontecer. No máximo, ela deve lançar um livro com contos fofinhos sobre maternidade e vida em casal. Veja bem, isso é legal, mas é um caminho muito mais seguro que talvez não gere textos tão provocativos quanto no seu primeiro livro.
Se ela tiver coragem pra continuar com a sua escrita, sem medo do que as pessoas vão pensar dela, acho que ela pode ser uma das escritoras brasileiras mais famosas da atualidade.
E quando ela morrer, compilarão o roteiro de seus melhores Reels e farão um livro de coletânea de contos sobre a maternidade e vida em casal, mesmo que ela não peça por isso.