Vi um usuário de algum fórum de literatura dizer que a literatura é a arte mais autônoma de todas, pois é fácil escrever e publicar um livro sozinho, enquanto que, para quase todas as artes, isso não é possível.
E de fato, isso é verdade. Para fazer um livro, um escritor precisa apenas de um papel e caneta – que podem ser trocados facilmente por um computador ou até mesmo um celular nos dias de hoje. Todos os materiais são facilmente encontrados em qualquer local por preços relativamente acessíveis, dependendo de onde você mora.
Pense na pintura e no desenho artístico. Neles, você precisa de tinta, uma tela, pincéis… pode simplesmente desenhar com lápis e papel, mas, se quer deixá-la mais rebuscada, precisará usar mais itens (a não ser que você seja um dos raros artistas que faz verdadeiras obras de arte apenas com lápis, mas esses não são muitos). Também há a opção de usar tablets, de maneira que com ele você elimina a necessidade de muitos outros equipamentos, tornando-se então um artista digital. Mas mesmo assim, é preciso encontrar um professor de desenho ou aprender sozinho com livros e vídeos – enquanto professores da sua língua nativa estão disponíveis em qualquer escola, e você é alfabetizado desde cedo.
Para fazer esculturas ou criações arquitetônicas, o problema é o mesmo. Você precisa de matéria-prima (e muita, dependendo de sua criação). Muitas vezes, um patrocinador pagará a você pela sua arte, de forma que você não pode ser tão inventivo – apenas se você for um escultor ou arquiteto mais consolidado, de maneira que as pessoas paguem pelas suas idiossincrasias, e não pela construção de algo específico.
Com a dança, você só precisa do seu corpo, mas você recruta todo o seu corpo e mente, enquanto que na escrita você só usa as mãos e o cérebro. É difícil aprender a dançar de maneira verdadeiramente artista – algo bem diferente de quando você faz sua dança de salão duas vezes na semana.
Na música, você tem algumas opções: pode ser um músico de estúdio e tocar em outras bandas, acompanhando-as eventualmente em turnês como músico contratado; pode tocar em uma orquestra os grandes clássicos da música erudita; mas, quando falamos em música como forma de autoexpressão, acredito que a maioria pense em compor suas próprias músicas, lançar sua carreira e ter uma banda. Hoje em dia, pode-se fazer isso com mais facilidade do que antes graças à internet, mas ainda assim você precisa aprender muitas coisas: a tocar um ou mais instrumentos; a fazer gravações de qualidade; a mixar o som de maneira apropriada, etc. Claro, você pode aprender tudo isso, mas essa não é a regra: na maioria das vezes, você fica na mão de um produtor e de um engenheiro de som, que, em última instância, são quem darão a cara pra sua arte. Você precisa encontrar um bom artista gráfico que represente bem a sua música pra fazer a arte do seu álbum. E, por fim, ainda precisa divulgar a sua música de maneira que as pessoas queiram ouvir – e fica relativamente difícil fazer isso com dezenas de artistas pop com bilhões de investimento por trás.
O teatro, ah, o teatro! De fato, ele se aproxima muito da literatura, de maneira que um dos maiores nomes da literatura de todos os tempos foi um compositor de peças – Shakespeare! Mas, para levar sua peça à plenitude, o autor precisa contar com uma equipe de atores disposta a interpretá-la, o que envolve uma equipe de produção por trás, o que traz a necessidade de patrocínio e interesses de terceiros em quem vai e quem não vai ser divulgado nessa indústria.
E quanto ao cinema? De fato, os roteiristas se assemelham muito aos romancistas e aos escritores de peças, mas fazer um filme exige muitos custos (seja de produção ou de distribuição). Você precisa de apoio financeiro, seja por investimentos públicos ou privados, e, pra isso, precisa agradar a uma série de interesses. A classe artística precisa abençoar sua criação, e Hollywood é impiedosa. De fato, existem produtoras independentes e seu filme pode ser feito mesmo assim, mas torna-se muito mais difícil com um orçamento reduzido.
Mas a literatura é incrível: você pega um computador, escreve (algo que certamente você aprendeu na escola) e, mesmo se estiver ruim, você tem todos os meios disponíveis para continuar praticando. Você pode escrever mais e mais, ler bons autores e dicas de escrita, que podem ser encontrados facilmente de graça na internet graças ao domínio público. Você não precisa da aprovação de ninguém, de nenhum tipo de financiamento, de nenhum material rebuscado para começar a escrever. Você não precisa ser rico, ter pessoas influentes pra apoiar o seu projeto, nem nada do tipo: é só você e a sua arte.
E pra distribuí-lo? Assim como a música, o livro pode ser facilmente distribuído como arquivo através da internet, mas com o benefício de que o tamanho do arquivo é muito menor: em um pendrive de 1GB, você pode ter 10 ou 20 álbuns. Mas você pode ter 10 mil livros facilmente. E na versão física? É um item com menos de um quilo, via de regra, que você pode levar por aí e usar onde quiser, que não exige nenhum dispositivo externo para que ele possa ser utilizado e que funciona dessa forma há séculos.
Por mais que haja uma indústria literária bastante consolidada, ela movimenta muito menos dinheiro do que o cinema ou a música. Com menos bilionários por trás da divulgação de livros, é possível que mesmo criadores pequenos consigam ter algum destaque se autopublicando ou publicando por meio de pequenas editoras. Sabemos que as principais estantes nas livrarias são compradas, mas ainda assim a concorrência de um escritor pequeno é bem menos desleal do que a de um músico iniciante, por exemplo.
E as ideias mais contracorrente podem ser divulgadas através de livros – e o são. Não espere ver esse tipo de coisa em filmes ou até mesmo peças. A única arte que chega perto disso é a música, mas, via de regra, artistas muito fora da corrente não têm os recursos necessários pra fazer uma gravação de qualidade, e geralmente recorrem a músicas mais voltadas para o humor, e não para a qualidade musical.
Só com a literatura é possível ser verdadeiramente livre pra criar a sua arte, sem a necessidade de terceiros para colocá-la em prática. Só ela permite criar arte com instrumentos simples, disponíveis para qualquer tipo de pessoa. Só ela pode ser a verdadeira contracultura que todos esperam que venha de Hollywood e a indústria musical, que na verdade são controlados pela elite com trilhões de dólares prontos para investir. A literatura é a única forma através da qual uma pessoa, da solidão de seu quarto, pode desafiar o mundo com suas ideias.