Vocês todos sabem: George R. R. Martin, criador das Crônicas de Gelo e Fogo (que foi adaptada pela HBO como a famosíssima série Game of Thrones), está há mais de 10 anos sofrendo para lançar o sexto livro da série, “The Winds of Winter” – e, além disso, ele ainda tem um sétimo e último livro, que contará o final desta saga, para escrever.
Sou fã da série e por muitos anos procrastinei para começar a ler os livros. “Vou esperar lançar tudo pra ler de uma vez”, eu dizia. Mas, depois de conhecer o trabalho de Franz Kafka, minha visão sobre isso mudou: decidi que irei ler todos os 5 livros já lançados da série, mesmo sabendo que talvez a história nunca termine.
E confesso algo ainda mais surpreendente: meu desejo real é que ele nunca finalize sua história de maneira definitiva. Mas pra entender melhor o porquê disso, vamos conhecer um pouco mais sobre Kafka:
Franz Kafka: Obra (In)Completa
Franz Kafka é um escritor tcheco que se destacou como um dos autores mais influentes do século XX. Suas obras destacam temas como alienação, burocracia, falta de adequação ao meio – tudo isso recheado de situações absurdas.
Mas muitos não sabem que a fama do escritor, assim como aconteceu diversas vezes ao longo da história, só veio depois de sua morte: morto aos 40 anos por conta de tuberculose, foi seu amigo Max Brod que publicou o resto de suas obras. Vale atentar-se para o fato de que o próprio Kafka orientou seu amigo a queimar toda a sua obra – mas, felizmente, Brod ignorou seu pedido.
Em vida, Kafka só havia publicado cerca de 1/6 de sua obra total. Após sua morte, Brod publicou diversos trabalhos do famoso escritor: três romances, algumas histórias curtas, dezenas de contos e até mesmo sua correspondência com pessoas queridas, sendo a mais famosa a sua conhecida “Carta ao Pai”.
Inclusive, em um de seus romances chamado “O Castelo”, Kafka termina sua obra de maneira súbita, no meio de uma frase e em um momento da história em que parecia que as coisas poderiam dar uma guinada pra melhor. Max Brod chegou a comentar como Kafka queria que fosse o final da obra, mas só podemos imaginar como chegaríamos a esse final.
E esse é o espírito geral das obras desse tão famoso escritor: ficamos nos perguntando o que seria de seu trabalho literário se ele vivesse mais 40 anos. Se ele seria famoso, se ele terminaria seus romances, se ele escreveria obras ainda melhores e se ele conseguiria resolver seus problemas pessoais e familiares.
E por todo o mundo, curiosidades sobre a vida e o trabalho de Kafka florescem – quase tanto quanto o interesse por suas obras. Pra cada trabalho acadêmico sobre o estilo literário do escritor tcheco, surge outro sobre detalhes de seus manuscritos, especulações sobre fatos de sua vida, etc. E tudo isso se deve a apenas um fato: sua obra terminou incompleta.
O ser humano gosta de completar as histórias em sua própria cabeça. As pessoas gostam de imaginar como seriam as coisas se estivessem finalizadas. Por isso muitos teorizam sobre o final de suas narrativas, sobre suas relações amorosas, sobre como seu estilo literário se desenvolveria e outros detalhes.
De certa forma, essa incompletude faz parte de sua obra: caótica, súbita e cheia de possibilidades. E é por isso que sua vida e obra andam misturadas, fascinando milhares de pessoas até hoje.
Com esse entendimento, podemos voltar a George R. R. Martin.
Crônicas de Gelo e Fogo: Uma Obra Incompleta?
Assim como Kafka, que morreu no início do século XX e teve seu nome propagado para o resto do mundo, o mesmo pode acontecer com Martin no século XXI. Caso o autor consiga terminar a saga antes de morrer, tudo estará acabado: saberemos o que houve com todos os personagens, não haverá espaço para teorias de fãs e não haverá um mistério e uma gama de possibilidades para as diversas narrativas da história.
Mas e se Martin não conseguir terminar sua obra? Ele já disse que possui cerca de 1100 páginas prontas das 1500 que planeja para o próximo volume. Sendo assim, seus editores poderiam publicar a obra da maneira incompleta como ela está e deixar o final em aberto. Claro, isso pode parecer péssimo para os fãs, mas nem sempre o que os fãs pedem é o que os fãs querem de verdade.
Pense o seguinte: e se Jon Snow continuar vivo? E se a família Bolton dominar o norte definitivamente? E se Daenerys não conseguir chegar ao fim de sua missão para conquistar Westeros, morrendo aleatoriamente com uma flechada em seu dragão? E se Cersei terminar a história sendo a rainha dos Sete Reinos? E se os White Walkers vencerem? Independente do final, muitos fãs ficarão desapontados com o resultado das escolhas de Martin.
A espera já é tão extensa que, nessa altura do campeonato, qualquer história que ele lançar, por mais primorosa que seja, dividirá opiniões. A maioria dos fãs ao redor do mundo começou a ler quando os 5 primeiros livros já estavam publicados, mas agora é diferente: haverá uma história nova para os milhões de fãs da saga e muito do que ele escrever fatalmente irá contra a expectativa do público, de forma que muitos questionarão as escolhas do autor.
Do jeito que as coisas estão polarizadas hoje em dia, logo se formarão dois grupos: o primeiro que defenderá com unhas e dentes tudo que ele decidir pra trama, e de outro lado surgirão pessoas que verão problemas nos mínimos detalhes narrativos. Poucas serão as pessoas capazes de analisar a obra pelo que ela será.
Ao contrário: se ele morrer e forem lançados apenas os manuscritos que ele já tem, a história ficará em aberto e os fãs não terão uma resposta em definitivo para o que acontecerá com seus personagens favoritos. Claro, é possível que nessas mais de 1000 páginas já prontas, alguns fatos deixem alguns fãs desapontados, mas, considerando que ele pretende terminar a obra em mais um livro, eu duvido que os personagens principais já teriam seu destino selado.
Sonhar é melhor do que Viver
Apesar de nunca ter lido os livros (tarefa que me comprometi a fazer nos próximos meses), vejo em diversos canais no YouTube e discussões no Reddit que uma das partes preferidas dos fãs é teorizar sobre o que acontecerá nas próximas obras. Desde que comecei a ver a série até hoje, milhares de pessoas teorizam sobre as profecias, sobre o que pode acontecer com personagem X ou Y, e como Martin vai desenrolar sua trama com as dezenas de personagens que estão envolvidos na narrativa.
É como se o caminhar fosse mais importante do que o destino. É como a pessoa que deseja muito por algo durante anos, mas, quando conquista o que quer, logo perde o interesse e volta seu foco para o próximo objetivo.
Com a publicação póstuma dessas 1100 páginas, é possível reavivar a chama dos fãs e dar combustível o suficiente pra que eles teorizem por anos a fio, mantendo a chama de Westeros acesa. As possibilidades de final seriam amplamente discutidas, sua obra seria algo discutido na cultura pop por gerações, e certamente ele seria lembrado como um dos grandes autores do século.
Ou seja: é muito mais vantajoso pra ele deixar a história com final aberto, com um mundo cheio de possibilidades, do que terminar sua obra e fatalmente deixar uma grande massa de fãs desapontados – fãs que nunca estão satisfeitos com nada, essa é a verdade. Especialistas buscariam seus manuscritos para tentar entender qual seria o final, haveria discussões e pontos conflitantes a respeito disso, trabalhos acadêmicos seriam feitos para detalhar o tema, etc. Esse senso de mistério, de misticismo, perduraria em sua obra e a tornaria memorável para sempre.
Se eu fosse Martin, me concentraria em lançar o segundo volume de “Fogo e Sangue” e de escrever mais novelas pra Dunk & Egg pelo tempo que me sobrasse. Ao morrer, “The Winds of Winter” seria publicado de maneira incompleta e deixaria os fãs tristes, é verdade, mas cheios de desejo por saber qual seria o verdadeiro final deste grande épico – o que os deixaria muito mais satisfeitos do que o final verdadeiro, no fim das contas.
E claro, nada de aceitar que outra pessoa publique uma continuação oficial! Os fãs podem fazer fanfics o quanto quiser, mas a história oficial precisa terminar aberta – afinal, terminar a história com outro autor fecharia a janela infinita de possibilidades que eu já citei, além de fazer isso da pior forma possível: através das mãos de outra pessoa, com valores, concepções para a história e um estilo literário totalmente diferente.
Veremos o que o futuro nos espera.